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FNM - O que a história não quis contar!

Uma fábrica de motores para aviões onde foram produzidos de máquinas de costuras a caminhões Fiat; de boas intenções a grandes escândalos.

Compreender a história da Fábrica Nacional de Motores, a “Fenemê”, requer ir muito além da sua linha de produção. Aconteceu um pouco de tudo: alavanca da nossa industrialização, do atraso tecnológico; incluindo fatos da força de vontade política versus jogos de poderes. Convidamos você a fazer um passeio sobre este intrigante “pedaço” da indústria automotiva do Brasil, que pode claramente ser dividido em duas partes: os jogos de interesses sobre a empresa e a fantástica história dos “Fenemês”. Nesta edição, falamos sobre a primeira parte e, em breve sobre a segunda.

Surgida em 1942, a FNM foi fruto de um posicionamento estratégico do governo americano: a construção de uma fábrica de aviões na América do Sul, longe da ebulição dos principais teatros de guerra: Europa e Oriente. A campanha da FAB em conjunto com o 5º Exército americano facilitou a execução dessa idéia. O grande promotor dela foi o Brigadeiro Guedes Muniz. Na década de 40 uma missão militar foi enviada aos EUA para acertar sua construção, valendo-se de uma lei americana que facilitava a concessão de financiamentos a países aliados com o intuito de fortalecer suas economias de guerra.

O local escolhido foi uma imensa área devoluta no município de Xerêm, no Rio de Janeiro. Na época, uma área pantanosa, cheia de jacarés, insalubre, de densa mata virgem e com altíssima incidência de malária. Embora as imensas dificuldades, o que valeu foi o esforço lobista do Almirante Amaral Peixoto, protetor político do Rio, que queria “civilizar” a região, dando-lhe um status industrial. Mas, pressionando do outro lado, estavam interesses militares estratégicos.

Enterrada aos pés da Serra de Petrópolis, a fábrica estaria a salvo de qualquer bombardeio aéreo. Os desenhos da fabrica vieram todos prontos dos EUA. Pouco tinha conhecimento que o real objetivo americano era tão somente a manutenção de uma espécie de reserva industrial para eventualidades. Assim, forçaram a fabricação de um motor de avião cujo projeto já era obsoleto e não propiciaria qualquer transferência tecnológica: o Wright-Whirwind de 450 hp para aviões de treinamento, caças e bimotores.

A fábrica quando ficou pronta, em 1947, escondida atrás da serra de Petrópolis.

Linha de montadora de onde saíram os caminhões FNM, Alfa Romeo e Fiat.

Ao término da 2ª Grande Guerra, a produção de motores foi desativada, fazendo com que o governo americano desistisse do negócio. Em 1947, o governo brasileiro a transformara em S.A. e a vinculara à Casa Militar da Presidência da República.

A FNM ingressara num período de completa indefinição. A estrutura da fábrica era um gigante improdutivo, com mais de 1.000 máquinas operatrizes paradas, a procura de atividade. Por um tempo passara a produzir peças fundidas para máquinas de costura, quadros de bicicleta, carcaças de geladeiras, parafusos e até material bélico segundo contavam as más línguas.

Fábrica Nacional de Motores

O caminhão Brasileiro

A rigor, a vocação automobilística da FNM nada mais foi do que a continuidade da idéia de substituição das importações que pouco depois seria perseguida pelo governo getulista. Os anos passam e as dificuldades aumentam. No início da década de 50, Getúlio Vargas criara a Comissão de Desenvolvimento Industrial - o que lhe confere o título de pai do desenvolvimentismo e não a Kubitschek. Vargas, então, preocupado com o equilíbrio das contas externas, verifica a possibilidade da produção de caminhões no país. Excetuando-se os bens de capital e o petróleo, o restante da cesta de produtos importados era tão variada que tornava-se difícil atacar um outro ponto específico. Se um destes casos não fossem devidamente solucionado, o país não teria possibilidades de equilibrar a balança de pagamentos. Esta é uma longa história, que contaremos uma parte para nosso leitor entender o que veio depois.

Após 1945, a nova ordem mundial precisava de estabilidade para reconstruir um mundo devastado pela guerra, tal estabilidade foi discutida em diversas conferências. A mais famosa, a de Bretton Woods, reuniu os 44 países mais importantes e dela saíram duas instituições bastante conhecidas entre nós; o FMI e o Banco Mundial, cujo objetivo maior seria administrar economicamente as necessidades financeiras internacionais. Nesta mesma reunião ficou acertado o valor da paridade entre as moedas, e no caso brasileiro, acabamos aceitando uma relação bastante desfavorável ao Brasil e que incentivava de sobremaneira as importações.

A fábrica foi idealizada, com apoio dos Estados Unidos, para produzir motores de avião.

Das caldeiras saíram de tudo: máquinas de costuras, peças de bicicletas e até caminhões.

Fábrica Nacional de Motores

Proibição dos importados

Ao final da guerra, entrávamos na década de 50 com nosso saldo negativo, e nesta trajetória, iríamos quebrar. Neste momento, o então presidente Getúlio Vargas passou a interceder, promovendo a industrialização em substituição das importações. Em agosto de 1952 limitou-se a importação de autopeças e em abril de 1953 foi proíbido a importação de veículos montados. Abriram-se as portas para o surgimento da indústria automobilística nacional; mas as idéias de Vargas não progrediriam, ele se suicidara deixado aquela famosa carta, um dos mistérios da nossa história e em seu lugar assume Juscelino Kubitschek que em 1956 cria um grupo chamado GEIA - Grupo Executivo da Indústria Automobilística - uma espécie de colegiado para articular os mais diversos interesses, composto por representantes do Ministério da Guerra, Ministério de Viação e Obras Públicas, Cacex, Sumoc, BNDE e a Carteira de Câmbio e Conselho da Política Aduaneira, cujo objetivo central era a facilitação da implantação das montadoras no Brasil.

Fábrica Nacional de Motores

A FNM caminhões

Parecia ser entendimento comum entre os muitos articuladores do período que as multinacionais automobilísticas não se instalavam no país devido as indefinições políticas e a ausência de um órgão controlador; em tese o GEIA satisfaria esta lacuna. As orientações proporcionadas pelo GEIA conduziram a uma rápida integração vertical da produção automobilística. Surgiu, finalmente e oficialmente, a FNM caminhões, como resultado das políticas governamentais.

A FNM não entrou de imediato na produção de veículos neste período. Era preciso primeiro experimentar. Os testes iniciais foram com a General Motors que autorizou a produção de peças para seus caminhões importados dos EUA e, posteriormente, com peças para a Willys. E sem que tivéssemos tempo para perceber, a FNM, aos trancos e barrancos, abria as portas para a credibilidade dos produtos industriais fabricados no Brasil, este foi um dos grandes méritos dela.

Mas os dirigentes da FNM já haviam se adiantado as idéias de Getúlio e no final dos anos 40, antes mesmo do governo getulista tomar oficialmente a decisão de produzir caminhões no Brasil, eles já haviam entrado em contato com a fábrica italiana Isotta Fraschini, trazendo um projeto de caminhão que para os padrões da época já estava ultrapassado. Os idealizadores da FNM buscaram projetos melhores, é verdade, mas os proprietários das marcas, temerosos em produzí-los no Brasil, receavam prejudicar sua imagem e se recusaram a participar do projeto. Malgrado a obsolecência dos veículos da Isotta, o orgulho era tanto que os primeiros caminhões produzidos pela FNM tinha a letra “ N” na frente do radiador, simbolizando o nacionalismo.

Fábrica Nacional de Motores

Caminhão Alfa Romeo

Curiosamente, quando a FNM passa a apostar na Isotta, quando mal tinha produzido 200 veículos, esta vai a falência. Pressionados, os italianos, a título de compensação pelo prejuízo, oferecem à FNM o caminhão Alfa Romeo, na época uma marca que pertencia ao governo italiano. O primeiro modelo da Alfa Romeo foi o D-9500 - que em 1957 foi substituido pelo D-11000, famoso “Barriga d´água” ou “ João bobo”. Ambos foram responsáveis pela popularização da marca Fenemê.

Mas ela logo teria concorrentes. Em 1956, o GEIA propõe duas coisas: primeiro a instalação de indústrias automobilísticas, cada uma de um país: Suécia, Japão, EUA, Alemanha e França - e, em segundo, a venda da FNM, porque viam-na como um desestimulo às demais indústrias, mas o tempo daria mais um fôlego à empresa.

Isso só vem a acontecer 11 anos depois, através do Decreto-Lei nº 103 de 13 de janeiro de 1967.

A venda da FNM teve todas as características de um escândalo financeiro. Até onde se tem conhecimento, alguns destes documentos da transação ainda estão desaparecidos ou “perdidos” em algum lugar de um passado não muito distante. Esta venda, posteriormente, foi investigada por uma CPI instaurada em 1968 e que, curiosamente, nunca foi concluída.

A empresa foi vendida sob a suspeita de oferecer uma série de facilidades, indevidamente concedidas, sem licitação pública, com a demissão antecipada de um grande número de trabalhadores e somente depois de ter sido saneada com dinheiro dos cofres públicos; especialistas da época, que eram contra a transação, alegavam que só a área de 51 milhões de m2 que a fábrica ocupava em Xerém, e que equivalia a metade da extensão territorial do município, tina um valor muito superior ao valor da venda.

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Fiat assume a fábrica

As criticas à venda da FNM foram contundentes e durante muito tempo circularam nos jornais. Neste ambiente obscurecido pelo militarismo e seus atos institucionais, a FNM foi vendida por meio dos documentos de nº MF-136.147/68 e o MIG-09/68 e para assiná-los os signatários se dirigiram ao Ministério da Fazenda que foi especialmente aberto num domingo para a conclusão do negócio.

Do lado do governo, valia-se do famoso “Relatório Macedo Soares”, que indicava como fatores decisivos para a venda: a irrealidade dos custos, desorganiação interna e ineficiência geral, descontinuidade de gestão, divergências entre diretores e a necessidade de desestatização. Aliado a isso, havia a obsolescência dos equipamentos e a inferioridade técnica do produto.

Diz o ditado popular que aquilo que começa mal, termina ruim. Assim, a Alfa Romeo, empresa que comprou a FNM, também passava por dificuldades.

Em 1973, a Fiat italiana anuncia a comprar de 43% das ações da Alfa e pouco depois tornava-se majoritária assumindo a fabricação de caminhões no Brasil, embora mantendo por alguns anos a logomarca Alfa Romeo. Talvez incentivada pelos miraculosos planos econômicos dos militares, a Fiat reformula toda a produção anterior, substituindo os saudosos FNM 180 e 210.

Para a Fiat, entretanto, não restava opção, os modelos obsoletos da Afla Romeo logo seriam engolidos pelo lançamento do LK 140 da Scania, um caminhão que representava uma nova concepção de projeto e pelo aumento da estrutura viária asfaltada; quem dirigiu um FNM lembra-se bem que ele não passava de 70 km/h em virtude da relação do trem-de-força e pelos péssimos freios que possuia.

Vieram o Fiat 70, depois o 80 seguido pelo semipesado 130 que depois foi substituído pelo 140 - já obsoletado na Europa e produzido aqui com uma estamparia recondicionada. Em 1979, a Fiat Diesel S.A. lança o médio Fiat 120.

Fábrica Nacional de Motores

O Fiat 190

Neste mesmo ano, a Fiat muda a sua diretoria comercial do Rio para São Paulo onde estava 50% de seu mercado e passa a vender o Fiat 190 H de cabine avançada, três anos depois passa a ser administrada pela Iveco que introduz um modelo pesado turbinado. No ano seguinte, outra reviravolta: funde seu setor administrativo com a Fiat Automóveis, em MG.

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O fim e o retorno

Malgrado todo o esforço da Fiat, nenhuma das alterações surtiu o resultado esperado e em seus melhores momentos ela deteve parcos 2,5% do mercado brasileiro de caminhões e no setor de pesados chegou a 12%. Neste mesmo período, a Fiat descontinua a fabricação dos veículos 120 e 140 por absoluta falta de compradores, era o início do fim. Quando anunciou o encerramento das suas atividades, no dia 21 de julho de 1985, a Fiat tinha 50 concessionários, que mesmo após uma tumultuada reunião na chuvosa quarta-feira de 26 de juno de 1985 em São Paulo, capitaneada pelo presidente da Abecif, Elio Massari, dono da CM Veículos e Peças de São Bernardo, não conseguiram reverter a situação.

Com o apoio do então presidente da República, João Goulart, o lider sindical Jarbas Amorim discursa para os funcionários da FNM em comício contra a venda da empresa.

Termina assim, de forma melancólica, um capítulo de 40 anos da nossa indústria automobilística, estampada na saga de todos que trabalharam na FNM, representada pela empresas que lutaram para manter este sonho vivo. Em 1997, a Iveco retorna ao Brasil, com uma nova fábrica em Sete Lagoas, MG. Mas, dentro do Grupo Fiat, ninguém quer se lembra desta história cheia de fracassos. Mas, mesmo assim, ainda existem muitos fãs de FNM e do Fiat 190.

Agradecemos a Transportes Diamante, a Biblioteca Ferreira Gular (Xerém, RJ), a Renato Wilbord, e a Gildo Balliana, que de alguma forma, colaboraram na pesquisa sobre a FNM.

artigo digitado por Eriko Tallevi e revisado por Renato Cabral.

Fonte: Revista Transporte Mundial Nº12, Outubro/Novembro de 2003, Editora MotorPress Brasil.

reportagem por Wilson Rebello.

Se desejar ler o artigo original da revista Transporte Mundial Nº12 clique aqui.